sábado, 20 de setembro de 2014

Travessia de primavera

Foto: Ronaldo Barroso



As eleições também se dão em casa, onde ficamos nos exibindo para ganhar os corações daqueles com quem nos relacionamos


Equinócio de equidade. Dia e noite com a mesma duração. Equidade mental — os opostos têm o mesmo valor.

Eleições na primavera — opositores se equivalem? Travessia de ir e vir, de atravessar sem que uma pessoa atravesse o caminho da outra ou mostre o avesso, o revés.

Eleições de avessos que se avessam.

Como ainda estamos distante de um ideal civilizatório de equidade e respeito!

O equinócio de setembro marca o início da primavera no Hemisfério Sul e o início do outono no Norte. É um momento em que nós, budistas, celebramos a equidade entre dia e noite, o que nos facilita a travessia do caudaloso (confuso, cheio de entulhos, lixo, poluição — algumas vezes seco, rachado, furado, fétido, outras vezes molhado, coberto, cheiroso, ardiloso com redemoinhos e pedras submersas, escondidas, que podem furar o barco) rio da vida-morte.

Atravessar o rio é simbólico de perceber que estamos na margem do sofrimento, da ignorância, envenenados pela ganância e pela raiva.

Reconhecemos essa margem? Aflições, ansiedades, medos, desgraças? Os venenos que impedem a mente de ter sensações, percepções, conexões neurais e consciência leves e claras. Como águas poluídas, a mente fica turva, confusa, capaz de improbidades para obter sucesso, ganhar votos, eleger-se.

As eleições não são apenas presidenciais, de senado, assembleias, governos estaduais. As eleições se dão em casa — pessoas lutando pelos votos das famílias. Tanto um querendo ganhar o voto do outro, como também dos filhos, dos amigos, dos vizinhos, dos avós. Incessante.

Ficamos nos exibindo, contando vantagens (ou contando desvantagens — outra forma de se vangloriar) para obter aplausos, votos, para sermos eleitos aos corações e atenções das outras pessoas com quem nos relacionamos.

Funciona no trabalho, na rua, no trânsito, no Facebook, no Twitter. Funciona tanto na terra como nos céus. Queremos os votos de confiança, respeito e apoio de Budas, Bodisatvas, Santos, Santas, Profetas, Pastores, Divindades.

Queremos o apoio dos filósofos e dos sábios, bem com dos incultos e dos tolos. Queremos até os mornos.

Nossa carência e insuficiência se revelam no insulto, no rebaixar os outros, no ataque raivoso, dedo em riste.

Que triste.

Quisera poder viver um tempo de anistia, um tempo de alegria, um tempo de paz.

Tempo de atravessar desta margem confusa e agressiva, de tanta falsidade que duvidamos da dúvida — pois ninguém mais é confiável. Nem mesmo a mídia, nem mesmo eu.

Atravessar para a margem da tranquilidade, pegar o barco seguro da verdade e da ética. Chegar lá — que é aqui. Chegar onde se chega com ternura, com respeito, com brandura, sem luta, sem nenhuma luta.

Chega-se de manso, de leve, com trabalho, perseverança. Chega-se pensando no bem maior do grande Eu. Inclusão, alimentos, escolaridade, saúde.

Sem pilhérias, sem misérias.

Aqui e acolá. No planeta, nosso corpo comum.

Sem mais guerras, sem decapitações, sem ataques, sem mutilações.

Quero ver o mundo despertar dessa dormência tola e se unir em projetos que beneficiem a todos.

Isso é travessia.


(Monja Coen - Jornal O Globo)

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